Doce Tradição

<p style="text-align: justify;"><img src="https://revistazelo.com.br/public/backend/midias/tinymce/Gastronomia/DONA%20DOCEIRA%20c%C3%B3pia.jpg" alt="O Pastelinho de Goi&aacute;s, diferente do Portugu&ecirc;s, chamados de Bel&eacute;m, leva recheio de doce de leite com canela em p&oacute; (Foto: Lucas Terribili)" width="800" height="533" /></p>
<p style="text-align: justify;">O dito popular nos diz que tamb&eacute;m &ldquo;se come com os olhos&rdquo;. Os goianos bem souberam aliar beleza e gastronomia, especialmente no que diz respeito aos doces, uma esp&eacute;cie de cart&atilde;o de visitas do nosso povo. Uma tradi&ccedil;&atilde;o que salta dos tempos da coloniza&ccedil;&atilde;o, a do&ccedil;aria portuguesa se misturou aos frutos exuberantes do cerrado, criando uma efus&atilde;o de sabores. Doces de mam&atilde;o, figo verde, manga, laranja-da-terra, lim&atilde;o galego e tantos outros, sejam em barra, calda ou mesmo cristalizados, tornaram-se itens obrigat&oacute;rios na cozinha goiana.</p>
<p style="text-align: justify;">A hist&oacute;ria nos conta que a tradi&ccedil;&atilde;o est&aacute; diretamente ligada &agrave; feitura de doces nos conventos, ainda nos tempos da velha civiliza&ccedil;&atilde;o portuguesa. Galinhas eram criadas nos quintais dos conventos, sendo que sua carne servia de alimento e as claras dos ovos eram utilizadas para engomar as roupas. Ent&atilde;o, para que as gemas n&atilde;o fossem desperdi&ccedil;adas, as freiras come&ccedil;aram a us&aacute;-las para fazer iguarias refinadas e com nomes l&uacute;dicos. Eis o surgimento de docinhos como o triunfo-de-freira, cabelos de virgem e o manjar-real, entre outros. Hoje a tradi&ccedil;&atilde;o dos doces conventuais, como ficaram conhecidos, ainda resiste no Brasil, principalmente no interior, como na cidade de Goi&aacute;s, por exemplo.</p>
<p style="text-align: justify;">E se &eacute; imposs&iacute;vel dissociar a imagem do Estado de Goi&aacute;s dos doces, o mesmo pode ser dito sobre Cora Coralina. A goiana que escondia seus poemas em caixinhas de doces, tanto por receio do marido quanto para presentear amigos, se dizia &ldquo;mais doceira do que escritora&rdquo;. Cora e tantas outras moradoras da cidade de Goi&aacute;s, assim como de outros recantos goianos, s&atilde;o respons&aacute;veis diretas pela perpetua&ccedil;&atilde;o da cultura do doce por meio das suas receitas a&ccedil;ucaradas que atravessam gera&ccedil;&otilde;es.<br /> </p>
<p style="text-align: justify;"><strong>Cadernos de receita<br /></strong>O ateli&ecirc; Dona Doceira, por exemplo, surgiu com o prop&oacute;sito de prestar homenagens. &ldquo;O nome &eacute; uma homenagem &agrave;s doceiras da cidade de Goi&aacute;s, in&uacute;meras &lsquo;Donas&rsquo;, famosas e an&ocirc;nimas. Homenagem ao a&ccedil;&uacute;car, ao doce, &agrave; riqueza do nosso cerrado&rdquo;, afirma Adriana Lira, confeiteira &agrave; frente da empresa. Ela conta que o prazer por cozinhar come&ccedil;ou com a conviv&ecirc;ncia com suas av&oacute;s e bisav&oacute;s e muitas iguarias vieram dos velhos cadernos de receita, mas n&atilde;o esconde a influ&ecirc;ncia de Cora Coralina em sua arte. &ldquo;A riqueza, simplicidade, for&ccedil;a e impacto dos seus versos tamb&eacute;m est&atilde;o em seus doces&rdquo;, diz.</p>
<p style="text-align: justify;">H&aacute; seis anos em Goi&acirc;nia, o ateli&ecirc; produz por encomendas e tem seus queridinhos, como o lim&atilde;o galego recheado. &ldquo;Seu modo de preparo &eacute; lento, cheio de segredinhos. Descobri em um livro de do&ccedil;aria portuguesa de 1768 sua receita original e fiquei encantada. Este &eacute; um doce para chamar de nosso mesmo&rdquo;, revela Adriana, que, diante da grande demanda de clientes em S&atilde;o Paulo, levou o ateli&ecirc; para solo paulistano.</p>
<p style="text-align: justify;">&ldquo;No in&iacute;cio, poucos sabiam o que era doce goiano. Agora, virou hit. Lim&atilde;ozinho galego &eacute; sucesso absoluto. Flor de coco n&atilde;o para na vitrine. Pastelinho &eacute; queridinho&rdquo;, detalha. Em S&atilde;o Paulo, Adriana abriu um espa&ccedil;o f&iacute;sico que n&atilde;o tem ares de confeitaria, mas de uma esp&eacute;cie de casa goiana de visitas. L&aacute; pode-se encontrar desde pamonhas, empad&atilde;o goiano, biscoito de queijo a doces para todos os gostos.</p>
<p style="text-align: justify;">Questionada sobre receitas com significados especiais, Adriana n&atilde;o titubeia em citar duas delas. A primeira &eacute; a flor de coco, um doce esquecido, segundo ela. &ldquo;Depois do primeiro contato com Dona Alice Velasco, sua criadora, veio o meu encantamento e a certeza de que ele seria o carro-chefe da Dona Doceira&rdquo;, explica. Ela ainda incrementou com a cria&ccedil;&atilde;o de novas flores, como a flor de coco com doce de leite. &ldquo;O outro doce &eacute; o de mam&atilde;o verde gla&ccedil;ado. N&oacute;s o produzimos com a t&eacute;cnica antiga, enrolando fitas, passando linha e formando cord&otilde;es&rdquo;, prossegue.</p>
<p style="text-align: justify;">A confeiteira ainda revela que, no que diz respeito &agrave; est&eacute;tica e conte&uacute;do, algumas mudan&ccedil;as se fizeram necess&aacute;rias. &ldquo;Acredito que o segredo esteja n&atilde;o s&oacute; em manter a t&eacute;cnica apurada das receitas, mas apresent&aacute;-las com outro padr&atilde;o est&eacute;tico&rdquo;, diz ela, que tamb&eacute;m se mant&eacute;m atenta a quest&otilde;es de sa&uacute;de e promoveu redu&ccedil;&atilde;o de at&eacute; 50% do a&ccedil;&uacute;car. &ldquo;Soubemos como poucos trabalhar o a&ccedil;&uacute;car com fruta e ainda incrementar arte. Nosso tradicionalismo ajudou a preservar receitas seculares&rdquo;, complementa Adriana.</p>
<p style="text-align: justify;"><br /> <img style="display: block; margin-left: auto; margin-right: auto;" src="https://revistazelo.com.br/public/backend/midias/tinymce/Gastronomia/Adriana%20Lira2_Dona%20Doceira_Lucas%20Terribili%20c%C3%B3pia.jpg" alt="Adriana Lira: &ldquo;No in&iacute;cio, poucos sabiam o que era doce goiano. Agora virou hit&rdquo; (Foto: Lucas Terribili)" width="667" height="999" /></p>
<p style="text-align: justify;"><strong>Especialidade de fam&iacute;lia</strong></p>
<p style="text-align: justify;">Quando o assunto &eacute; confeitaria goiana, um nome &eacute; refer&ecirc;ncia: Tia Rosinha. Vinda de uma fam&iacute;lia de doceiras, ela fundou, em Goi&acirc;nia, nos anos 1980, a loja Tia Rosinha e se tornou sucesso absoluto. A confeiteira caiu no gosto dos clientes com suas receitas caseiras e irresist&iacute;veis. Os jovens marcavam presen&ccedil;a com intensidade, o frescor das receitas atra&iacute;a a freguesia. As tortas mal eram expostas na vitrine e se esgotavam por inteiro, inclusive os quitutes salgados, como o chamado bol&atilde;o, esp&eacute;cie de coxinha de frango mais gra&uacute;da, como relembra, saudosa, Dona Rosinha.</p>
<p style="text-align: justify;">A influ&ecirc;ncia da doceira veio direto da av&oacute;, Dona Lilica, al&eacute;m das v&aacute;rias tias, cada uma com a sua especialidade.&nbsp; Sobre os seus tempos de menina, lembra-se da &eacute;poca do caju, em que se fazia as passas de caju, em seguida vinham os figos, mangas, o mam&atilde;o. &ldquo;Todas as frutas viravam doces porque n&atilde;o existia geladeira, era uma forma de preserv&aacute;-las.&rdquo; O empres&aacute;rio Jos&eacute; Augusto de Sousa, seu filho, conta que cresceu em meio &agrave; atividade efervescente da m&atilde;e na cozinha. &ldquo;Lembro-me dos tachos de cobre, da &eacute;poca dos figos, os doces de goiaba em compotas cheirando pela casa&rdquo;, se recorda.</p>
<p style="text-align: justify;">Ao lado de seu s&oacute;cio, o gastr&ocirc;nomo Eduardo Sales, Jos&eacute; Augusto reabriu o ateli&ecirc; em 2011, com o nome Tia Rosinha Delicatessen. Dessa vez em Piren&oacute;polis, eles incrementaram o card&aacute;pio com novas f&oacute;rmulas e tend&ecirc;ncias. &ldquo;Trouxemos releituras de receitas tradicionais da minha m&atilde;e. Era engra&ccedil;ado que ela muitas vezes n&atilde;o reconhecia, provava e nos pedia a receita&rdquo;, se diverte. Novas iguarias se tornaram sensa&ccedil;&atilde;o entre os clientes, como o baruzinho, um cajuzinho feito sem amendoim, produzido &agrave; base da castanha de baru. &ldquo;Quer&iacute;amos uma inova&ccedil;&atilde;o para o Festival Gastron&ocirc;mico de Piren&oacute;polis e foi um sucesso enorme&rdquo;, relembra.</p>
<p style="text-align: justify;">Sobre a forte liga&ccedil;&atilde;o entre o povo goiano e a confeitaria, Jos&eacute; Augusto tem sua teoria. &ldquo;A paix&atilde;o dos goianos por doces vem muito dos pomares. As pequenas ch&aacute;caras s&atilde;o muito generosas, a terra &eacute; muito boa, onde se plantando tudo d&aacute;&rdquo;, enumera ele, que ainda fala sobre o desperd&iacute;cio, muitas vezes inconsciente. &ldquo;Come&ccedil;ou-se a perceber que essas frutas eram melhor aproveitadas em doces&rdquo;, complementa.&nbsp; &ldquo;N&atilde;o d&aacute; para pensar em um bom almo&ccedil;o goiano sem uma bela mesa de sobremesas&rdquo;, ressalta.</p>
<p style="text-align: justify;">Dona Rosinha acredita que a tradicional confeitaria goiana n&atilde;o vem sendo exatamente resgatada. &ldquo;As confeitarias hoje em dia s&atilde;o bonitas e modernas, mas o sabor est&aacute; um pouco pasteurizado. As tortas hoje, sejam de nozes, chocolate ou morango, t&ecirc;m todas o mesmo sabor&rdquo;, destaca. Ela defende que os doces precisam ser feitos por unidade, que se trata de um trabalho artesanal. &ldquo;Falta um pouco de delicadeza nos sabores hoje&rdquo;, enfatiza. A confeiteira ainda indica que um bom lugar para se encontrar doces tradicionais de qualidade atualmente &eacute; o Mercado Central de Goi&acirc;nia.</p>
<p style="text-align: justify;"><img src="https://revistazelo.com.br/public/backend/midias/tinymce/Gastronomia/Dona%20Doceira_Lucas%20Terribili_7%20c%C3%B3pia.jpg" alt="No Ateli&ecirc; Dona Doceira, as flores de coco foram resgatadas da culin&aacute;ria tradicional, ganharam novos ares e hoje s&atilde;o um dos doces queridinhos da casa (Foto: Lucas Terribili)" width="800" height="533" /></p>
<p style="text-align: justify;"><strong>Novos sabores<br /></strong>H&aacute; algumas d&eacute;cadas que a confeitaria goiana vem recebendo novas pinceladas e pitadas de modernidade. O confeiteiro Adeyc Borges &eacute; um prod&iacute;gio goiano cuja trajet&oacute;ria vislumbra um futuro primoroso. Nascido em Itabera&iacute;, ele conta que desde crian&ccedil;a j&aacute; se aventurava na cozinha da av&oacute; e ajudava a tia com quitandas e bolos. &ldquo;Sempre pegava o caderno de receitas da minha av&oacute; para testar novos pratos&rdquo;, relembra.</p>
<p style="text-align: justify;">Ap&oacute;s passar pela Confeitaria Cravo e Canela, a Lu&iacute; Doces, especializada em doces finos para eventos, e o Restaurante Winik&aacute;, onde permanece at&eacute; hoje, Adeyc decidiu abrir seu pr&oacute;prio neg&oacute;cio. Junto de seu s&oacute;cio, S&eacute;rgio Paiva, fundou a Sabl&eacute; Patisserie, onde mistura frutas a confeitos finos e principalmente ao chocolate. &ldquo;Ingredientes como o minifigo, lim&atilde;o galego, laranjinha Kinkan e a jabuticaba se transformaram em deliciosos doces e bombons&rdquo;, comenta.</p>
<p style="text-align: justify;">&ldquo;Eu utilizo dois ingredientes t&iacute;picos do nosso bioma: a castanha de baru e a fava de baunilha do cerrado, uma orqu&iacute;dea que demora at&eacute; dez anos para florescer&rdquo;, explica Adeyc, que j&aacute; participou do Que Seja Doce, reality gastron&ocirc;mico do canal GNT. &ldquo;Os ingredientes do cerrado colaboram n&atilde;o s&oacute; para a composi&ccedil;&atilde;o de novas receitas e cria&ccedil;&atilde;o de novos sabores, mas tamb&eacute;m para a constru&ccedil;&atilde;o e fixa&ccedil;&atilde;o da nossa identidade&rdquo;, conclui.</p>
<p><img style="display: block; margin-left: auto; margin-right: auto;" src="https://revistazelo.com.br/public/backend/midias/tinymce/Gastronomia/DSC_0053.JPG" alt="Adeyc Borges transforma minifigos, lim&otilde;es galego e laranjinhas Kinkan em doces e bombons (Foto: &Acirc;ngela Motta)" width="642" height="813" /></p>
<p style="text-align: right;"><em>Mat&eacute;ria publicada na edi&ccedil;&atilde;o de n&uacute;mero 37 da revista Zelo </em></p>

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